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quinta-feira, 4 de julho de 2013

Requisitos mínimos

Requisitos mínimos

A estrutura do material musical requer uma técnica peculiar, através do qual ela é imposta. Esse processo pode ser aproximadamente definido como plugging [colocação no circuito, promoção]. O termo plugging tinha originalmente o estreito significado da repetição incessante de um hit particular, de modo a torná-lo "um sucesso". Nós aqui o usamos no sentido amplo, de uma continuação do processo inerente à composição e ao arranjo do material musical. A promoção pelo plugging [literalmente, "arrolhamento"] almeja quebrar a resistência ao musicalmente sempre-igual ou idêntico, fechando, por assim dizer, as vias de fuga ao sempre-igual. Isso leva o ouvinte a extasiar-se como o inevitável. E leva, assim, à instituicionalização e à estandardização dos próprios hábitos de audição. Os ouvintes se tornam tão acostumados à repetição das mesmas coisas que reagem automaticamente. A estandardização do material requer um mecanismo de promoção vindo de fora, visto que cada coisa iguala qualquer outra numa extensão tal que a ênfase na apresentação proporcionada pela promoção precisa substituir a falta de genuína individualidade no material. O ouvinte de inteligência musical normal e que escuta, pela primeira vez, o tema de Kundry da ópera Parsifal é capaz de reconhecê-lo quando ele é tocado de novo, pois é inconfundível e não-cambiável por qualquer outra coisa. Se o mesmo ouvinte fosse confrontado com um hit médio, ele não seria capaz de distingui-lo de qualquer outro, exceto se fosse repedito com tanta frequência que ele seria forçado a recordá-lo. A repetição confere ao hit uma importância psicológica que, de outro modo, ele jamais poderia ter. Essa promoção é o inevitável complemento da estandardização. Desde que o material preenchar certos requisitos mínimos, qualquer canção pode ser promovida num sucesso, se houver uma adequada conexão entre gravadoras, nomes de conjuntos musicais, estações de rádio e filmes. Mais importante é o seguinte requisito: para ser promovido, um hit deve ter ao menos um traço através do qual possa ser distinguido de qualquer outro, e ainda possuir a completa convencionalidade e trivialidade de todos os demais. O presente critério, pelo qual uma música é julgada digna de promoção, é paradoxal. A gravadora quer uma peça musical que seja fundamentalmente idêntica a todos os hits correntes em ao mesmo tempo, fundamentalmente distinta deles. Só sendo a mesma é que tem chance de ser vendida automaticamente, sem requerer nenhum esforço da parte do usuário, e apresentar-se como uma instituição musical. E só sendo diferente é que ela pode ser distinguida de outras canções - o que é um requisito para ser lembrado e, portanto, ser um sucesso.

É claro que essa dupla aspiração não pode ser realizada. No caso de canções de fato gravadas e promovidas, verifica-se alguma espécie de compromisso, algo que, de modo geral, é o mesmo e ostenta apenas uma única marca mercantil que as faça parecer originais. O traço distintivo não precisa necessariamente ser melódico, mas pode consistir em irregularidades métricas, acordes ou timbres sonoros peculiares.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Pseudo-individuação

Pseudo-individuação

O paradoxo nos desejos - o relativo ao que é "estimulante" e o relativo ao que é "natural" - explica o caráter dual da própria estandardização. A estilização da sempre idêntica estrutura básica é apenas um aspecto da estandardização. Concentração e controle, em nossa cultura, escondem-se em sua própria manifestação. Não camuflados, eles provocariam resistências. Por isso, precisa ser mantida a ilusão e, em certa medida, até a realidade de uma realização individual. A manutenção disso está fundada na própria realidade material, pois enquanto o controle administrativo sobre processos vitais é concentrado, a propriedade permanece difusa.

Na esfera da produção do luxo, esfera a que a música popular pertence e em que não estão imediatamente envolvidas necessidades vitais, ao mesmo tempo que os resíduos do individualismo aí estão bem vivos, sob a forma de categorias ideológicas como gosto e livre-escolha, impo-se escamotear a estandardização. O "subdesenvolvimento" da produção musical em massa, o fato de que ela ainda está num nível artesanal e não num nível literalmente industrial, conforma-se perfeitamente a essa necessidade, que é essencial da perspectiva da grande empresa cultural. Se os elementos artesanais da música popular fossem todos abolidos, teria de ser desenvolvido um meio sintético de esconder a estandardização. Seus elementos já existem.

O correspondente necessário da estandardização musical é a pseudo-individuação. Por pseudo-individuação entendemos o envolvimento da produção cultural de massa com a auréola da livre-escolha ou do mercado aberto, na base da própria estandardização. A estandardização de hits musicais mantém os usuários enquadrados, por assim dizer escutando por eles. A pseudo-individuação, por sua vez, os mantém enquadrados, fazendo-os esquecer que o que eles escutam já é sempre escutado por eles, "pré-dirigido".

O exemplo mais drástico de estandardização de traços presumivelmente individualizados pode ser encontrado nos assim chamados "improvisos". Mesmo que os músicos de jazz ainda improvisem na prática, os improvisos deles se tornaram tão "normalizados", a ponto de permitirem o desenvolvimento de toda uma terminologia que, por sua vez, é tromboteada pelos agentes da publicidade do jazz para promover o mito do artesanato pioneiro e, ao mesmo tempo, lisonjear os fãs, aparentemente permitindo-lhes espiarem os bastidores e ficarem por dentro da história. Essa pseudo-individuação é prescrita pela estandardização da cultura. Está é tão rígida que a liberdade que ela permite para qualquer espécie de improviso é severamente delimitada. Improvisos - passagens em que é permitida a ação espontânea de indivíduos (Swing it boys") - são confinados dentro das paredes do esquema harmônico e métrico. Em um grande número de casos, como o "break" do jazz anterior ao swing, a função musical do detalhe improvisado é completamente determinada pelo esquema: o break não pode ser nada mais que uma cadência disfarçada. Por isso restam bem poucas possibilidades para uma efetiva improvisação, devido à necessidade de apenas circunscrever melodicamente as mesmas funções harmônicas subjacentes. Como essas possibilidades foram rapidamente exauridas, logo ocorreu a estereotipagem de detalhes improvisadores. Assim, a estandardização da norma acresce, de um modo puramente técnico, a estandardização de seus próprios desvios: pseudo-individuação.

Essa subserviência do improviso à estandardização explica duas principais qualidades sociopsicológicas da música popular. Uma é o fato de que o detalhe permanece abertamente ligado ao esquema subjacentes, de tal modo que o ouvinte sempre se sente pisando em solo firme. A escolha, em termos de alterações individuais, é tão estreita que o eterno retorno das mesmas variações é um sinal reassegurador do idêntico por trás delas. A outra é a função de "substituição" - os traços improvisatórios impedem que sejam tomados como fenômenos musicais em si mesmos. Eles só podem ser percebidos como embelezamentos. É um fato bem conhecido que, em arranjos mais ousados para jazz, notas pertubadoras, tons "sujos" em outras palavras, notas falsas, desempenham um papel conspícuo. São percebidas como estímulos excitantes só porque são corrigidas pelo ouvido para a nota correta. Isso, no entanto, é apenas um exemplo extremo daquilo que acontece menos conspicuamente em toda individuação na música popular. Qualquer ousadia harmônica, qualquer acorde que não caia estritamente dentro do mais simples esquema harmônico, exige ser percebido como "falso", isto é, como um estímulo que carrega consigo a clara prescrição de substituií-lo pelo detalhe correto, ou melhor, pelo puro esquema. Entender música popular significa obedecer a tais comandos ao escutar. A música popular impõe os seus próprios hábitos de audição.

Há um outro tipo de individuação reclamado em termos de espécies de música popular e diferenças entre orquestras identificadas pelos nomes dos seus líderes. Os tipos de música popular são cuidadosamente diferenciados na produção. Presume-se que o ouvinte seja capaz de escolher entre eles. As diferenciações mais amplamente reconhecidas são as entre swing e sweet, e entre nomes de big bands como Benny Goodman e Guy Lombardo. Rapidamente o ouvinte está se tornando habilitado a distinguir os tipos de música e até mesmo o conjunto que está tocando, e isso a despeito da fundamental identidade do material e da grande similaridade nas apresentações, por mais enfática que seja a distinção entre as marcas comerciais. Essa técnica de rotulação, no que concerne aos tipos de música e de conjunto musical, é uma pseudo-individuação, mas de uma espécie sociológica, fora do âmbito da estrita tecnologia musical. Providencia marcas comerciais de identificação para diferenciar algo que de fato é efetivamente indiferenciado.

A música popular se torna um questionário de múltipla escolha. Há dois tipos principais e seus derivados, entre os quais é preciso escolher. O ouvinte é psicologicamente encorajado pela inexorável presença desses tipos a saltar o que lhe desgosta e a deter-se no que lhe agrada. A limitação inerente a essa escolha e a alternativa claramente delineada que ela contém acarretam padrões de compartamento do tipo gosto/não gosto. Essa dicotomia mecânica rompe com a indiferença: é imperativo estar a favor do sweet ou do swing, caso se queira continuar escutando música popular.

Estandardização

Estandardização

A discussão anterior mostra que a diferença entre música popular e música séria pode ser fixada em termos mais precisos do que aqueles que se referem a níveis musicais como "lowbrow e highbrow", "simples e complexo", "ingênuo e sofisticado". Por exemplo, a diferença entre as esferas não pode ser adequadamente expressa em termos de complexidade e simplicidade. Todas as obras do primeiro classicismo vienense são, sem exceção, ritmicamente mais simples do que arranjos rotineiros de jazz. Melodicamente, os largos intervalos de numerosos hits como Deep purple ou Sunrise serenade são per se mais difíceis se seguir que a maioria das melodias de, por exemplo, Haydn, que consistem principalmente em grupos de tríades tônicas e de intervalos se segunda. Harmonicamente, a oferta de acordes dos assim chamados clássicos é, invariavelmente, mais limitada do que o de qualquer compositor corrente da Tin Pan Alley [em Nova York, reduto dos produtores de hits calcados no jazz] que copia Debussy, Ravel e até mesmo fontes posteriores. Padronização e não-padronização são os termos contrastantes fundamentais para estabelecer a diferença.

A estandardização estrutural busca reações estandardizadas. A audição da música popular é manipulada não só por aqueles que a promovem, mas, de certo modo, também pela natureza inerente dessa própria música, num sistema de macanismos de resposta totalmente antagônico ao ideal de individualidade numa sociedade livre, liberal. Isso nada tem a ver com simplicidade e complexidade. Na boa música séria, todo elemento musical, mesmo o mais simples, é "ele mesmo"; e, quanto mais altamente organizada é a obra, menor é a possibilidade de substituição entre os detalhes. No hit, entretanto, a estrutura subjacente à peça é abstrata, existindo independente co curso específico da música. Isso é básico para a ilusão de que certas harmonias complexas são mais inteligíveis na música popular do que essas mesmas harmonias na música séria. Pois o complicado na música popular nunca funciona como "ele mesmo", mas só como um disfarce ou um embelezamento atrás do qual o esquema sempre pode ser percebido. No jazz, o ouvinte amador é capaz de substituir complicadas fórmulas rítmicas ou harmônicas pelas esquemáticas que aquelas representam e ainda sugerem, por mais ousadas que possam parecer. O ouvido enfrenta as dificuldades do hit encontrando substituições superficiais, derivadas do conhecimento dos modelos padronizados. O ouvinte, quando se defronta com o complicado, ouve, de fato, apenas o simples que ele representa, percebendo o complicado somente como uma parodística distorção do simples.

Tal substituição mecânica por padrões estereotipados não é possível na boa música séria. Nela, mesmo o mais simples evento necessita de esforço para que seja captado de modo imediato, ao invés de ser vagamente resumido de acordo com prescrições institucionalizadas, capazes de produzir apenas efeitos institucionalizados. Caso contrário, a música não será "entendida". A música popular, no entanto, é composta de tal modo que o processo de tradução do singular para a norma já está planejado e, até certo ponto, realizado dentro da própria composição.

A composição escuta pelo ouvinte. Esse é o modo de a música popular despojar o ouvinte de sua espontaneidade e promover reflexos condicionados. Ela somente dispensa o esforço do ouvinte para seguir o fluxo musical concreto, como lhe dá, de fato, modelos sob os quais qualquer coisa concreta ainda remanescente pode ser subsumida. A construção esquemática dita o modo como ele deve ouvir, enquanto torna, ao mesmo tempo, qualquer esforço no escutar desnecessário. A música popular é "pré-dirigida", de um modo bastante similar à moda dos digest de material impresso. Em última análise, é a estrutura da música popular contemporânea a responsável por aquelas mudanças nos hábitos de ouvir música que discutiremos mais tarde.

Até aqui a estandardização da música popular foi considerada em termos estruturais - isto é, como uma qualidade inerente, sem referência explícita ao processo de produção ou às causas subjacentes à estandardização. Embora toda a produção industrial de messa necessariamente resulte em estandardização, a produção de música popular só pode ser chamada de "industrial" em sua promoção e distribuição, enquanto o ato de produzir música do tipo hit ainda permanece num estádio manufatureiro. A produção da música popular é altamente centralizada em sua organização econômica, mas "individualista" em seu modo social de produção. A divisão de trabalho entre compositor, harmonizador e arranjador não é industrial, mas simula a industrialização, a fim de parecer mais atualizada, enquanto, na verdade, adaptou métodos industriais para a técnica de sua promoção. Os custos de produção não aumentariam se os vários compositores de melodias hit não seguissem certos padrões estandardizados. Por isso, precisamos procurar outras razões para a estandardização estrutural - razões muito diferentes daquelas que se levam em conta para a estandardização de carros e alimentos para o desjejum.

A imitação oferece um fio condutor para enfrentar as razões básicas disso. Os padrões musicais da música popular foram originalmente desenvolvidos num processo competitivo. Quando uma determinada canção alcançava um grande sucesso, centenas de outras apareciam, imitando aquela que obtivera êxito. Os hits de maior sucesso, tipos e "proporções" entre elementos eram imitados, tendo o processo culminado na cristalização de standards. Nas condições centralizadas como as hoje existentes, esses standards acabaram se "congelando". Isto é, eles foram controlados por agências cartelizadas, resultado final de um processo competitivo, e rigidamente imposto sobre o material a ser promovido. O não-seguir as regras do jogo tornou-se critério para a exclusão. Os padrões originais, agora estandardizados, evoluíram num percurso mais ou menos competitivo. A concentração econômica em larga escala instituicionalizou a estandardização, tornando-a imperativa. Como resultado disso, inovações feitas por empedernidos individualistas foram bloqueadas. Os modelos standard acabaram investidos e revestidos com a imunidade da grandeza: "o rei não pode errar". Isso também explica as redescobertas na música popular. Elas não têm o desgastado caráter dos produtos estandardizados, manufaturados segundo um padrão dado. O sopro da livre competição ainda está vivo dentro delas. Por outro lado, os famosos "hits" antigos que são revividos recolocam os padrões que foram estandardizados. Eles são a idade de ouro das regras do jogo.

Esse "congelamento" de standards é socialmente imposto às próprias agências. A música popular precisa ir simultaneamente ao encontro de duas demandas. Uma é a de estímulos que provoquem a atenção do ouvinte. A outra é a de material que racaia dentro da categoria daquilo que ou ouvinte sem conhecimento musicais chamaria de música "natural": isto é, a soma total de todas as convenções e fórmulas materiais na música, às quais ele está acostumado e que ele encara como a linguagem simples e intrínseca à própria música, não importa quão tardio possa ser o desenvolvimento que produzia essa linguagem natural. Essa linguagem natural, para o ouvinte americano, provém de suas primeiras experiências musicais, as cantigas de ninar, os hinos cantados no culto dominical, as pequenas melodias assoviadas no caminho de volta da escola para casa. Tudo isso é muito mais importante na formação da linguagem musical do que a habilidade em distinguir entre o início da Terceira e o da Segunda sinfonia de Brahms. A cultura musical oficial subjacente, ou seja, a tonalidade maior e menor e todas as relações tonais aí implicadas. Mas essas relações tonais da linguagem musical primitiva colocam barreiras para tudo o que não se conforme a elas. Extravagâncias são toleradas somente na medida em que podem ser reenquadradas na assim chamada linguagem natural.

Em termos de demanda de consumidor, a estandardização da música popular é apenas a expressão desse duplo desejo a ela imposto pela mentalidade do público: que ela seja "estimulante" por desviar-se, de algum modo, do "natural" institucionalizado e que mantenha a suprecial do natural contra tais desvios. A atitude da audiência em relação à linguagem natural é reforçada pela produção estandardizada, que institucionaliza desejos talvez originalmente oriundos do público.