As duas esferas da música
A música popular, que produz os estímulos que aqui estamos investigando, costuma ser caracterizada
por sua diferença em relação à música séria. Essa difença é geralmente aceita e encarada como uma diferença
de níveis, considerados tão bem definidos que a maioria das pessoas considera o valor de cada qual
como totalmente independente do valor do outro. Nós acreditamos ser necessário, no entanto, primeiro
traduzir esses assim chamados "níveis" em termos mais precisos, tanto musical quanto socialmente,
que não só os delimitem de modo inequívoco, mas também lacem luz sobre todo o espectro das duas esferas
musicais.
Um possível método para alcançar essa clarificação seria uma análise histórica da divisão, tal como
ocorreu na produção musical, bem como das raízes das duas principais esferas. Como, porém, o presente
estudo se refere à real função da música popular em seu estado atual, é mais prudente seguir a linha
da caracterização do próprio fenômeno, tal como ele se dá hoje, do que retraçá-lo desde as suas origens.
Ossp se justifica tanto mais quanto essa divisão da música em duas esferas ocorreu na Europa muito
antes de ter surgido a música popular norte-americana. Desde o seu início, a música norte-americana
aceito essa divisão como algo preestabelecido e, por isso, o background histórico da divisão
só se aplica a ela indiretamente. Daí procurarmos, antes de mais nada, uma visão das características
fundamentais da música popular em seu sentido mais amplo.
Um jugalmento claro no que concerne à relação entre música séria e música popular só pode ser
alcançado prestando-se estrita atençaõ á característica fundamental da música popular: a estandardização.
Toda a estruta da música popular é estandardizada, mesmo quando se busca desviar-se disso. A estandardização
se estende dos traços mais genéricos até os mais específicos. Muito conhecida é regra de que o
chorus [a parte temática] consiste em trinta e dois compassos e que a sua amplitude é limitada
a uma oitava e uma nota. Os tipos gerais de hits são também estandardizados: não só os tipos
de música para dançar, cuja rígida padronização se compreende, mas também os tipos "característicos",
como as canções de ninar, canções familiares, lamentos por uma garota perdida. E, o mais importante,
os pilares harmônicos de cada hit - o começo e o final de cada parte - precisam reiterar o
esquema-padrão. Esse esquema enfatiza os mais primitivos fatos harmônicos, não importa o que tenha intervindo
em termos de harmonia. Complicações não têm consequências. Esse inexorável procedimento garante que,
não importa que aberrações ocorram, o hit acabará conduzindo tudo de volta para a mesma
experiência familiar, e que nada de fundamentalmente novo será introduzido.
Os pŕoprios detalhes não são menos padronizados do que a forma: e há toda uma terminologia para eles,
como break, blue chords, dirty notes. A estandardização deles é, no entanto,
algo diferente da estrutura geral. Não é aberta como essa última, mas escamoteada atrás de uma
fachada de "efeitos" individuais, cujas prescrições são manipuladas como um segredo de especialista,
por mais que esse segredo esteja aberto aos músicos em geral. Esse caráter contrastante da padronização
do todo e da parte proporciona um cenário rudimentar, preliminar, para o efeito sobre o ouvinte.
O efeito primário dessa relação entre a estrutura geral e o detalhe é que o ouvinte fica inclinado
a ter reações mais fortes para a parte do que para o todo. Sua captação do todo não reside na experiência
viva dessa peça concreta de música que ele tenha acompanhado. O todo é preestabelecido e previamente
aceito, antes mesmo de começar a real experiência da música; por isso, quase não parece influenciar
a reação dos detalhes, exceto em conferir-lhes graus variados de ênfase. Detalhes que, musicalmente,
ocupam posições estratégicas na estrutura geral - o começo da parte temática ou a sua nova entrada
depois da "ponte" [da parte intermediária] - têm uma chance melhor de ser reconhecidos ou favoravelmente
recebidos do que detalhes não situados dessa maneira, como, por exemplo, compassos no meio da parte
intermediária. Mas a esse nexo situacional jamais interfere com o próprio esquema. No concernente
a esse nexo situacional, os detalhes dependem do todo. Em momento algum qualquer ênfase é colocada
sobre o todo como um evento musical, nem tampouco a estrutura do todo depende dos detalhes.
Para fins de comparação, a música séria pode ser caracterizada do seguinte modo:
Cada detalhe deriva o seu sentido musical da totalidade concreta da peça, que, em troca, consiste
na viva relação entre os detalhes, mas nunca na mera imposição de um esquema musical. Por exemplo,
na introdução do primeiro movimento da Sétima sinfonia, de Beethoven, o segundo tema (em dó
maior) só alcança o seu verdadeiro significado a partir do contexto. Somente através do todo é que
ele adquire a sua peculiar qualidade lírica e expressiva, isto é, uma construção inteiramente contrastante
como o caráter como que de cantus firmus do primeiro tema. Tomado isoladamente, o segundo tema
seria reduzido à insignificância. Um outro exemplo pode ser encontrato no começo da recapitulação
sobre a indicação de pedal no primeiro movimento da Apassionata de Beethoven. Por seguir-se
à explosão precedente, ele alcança o supremo momentum dramático. Se se omitisse a exposição e
o desenvolvimento e se começasse com essa repetição, tudo estaria perdido.
Nada equivalente pode ocorrer na música popular. O sentido musical não seria afetado se qualquer
detalhe fosse tirado do contexto; o ouvinte pode suprir automaticamente a "estrutura", na medida
em que ela é, por si mesma, um mero automatismo musical. O começo da parte temática pode ser substituído
pelo começo de inúmeras outras. A inter-relação entre os elementos ou a relação dos elementos com o
todo não seria afetada. Em Beethoven, a posição é importante só numa relação viva entre uma totalidade
concreta e suas partes concretas. Na música popular, a posição é algo absoluto. Cada detalhe é
substituível; serve à função apenas como uma engrenagem numa máquina.
O mero estabelecimento dessa diferença ainda não é suficiente. Pode-se objetar que os esquemas
estandardizados de amplo alcance e os tipos de música popular estão ligados à dança e, por isso, são
também aplicáveis a derivados da dança na música séria, como, por exemplo, o minuetto e o
scherzo da Escola Vienense clássica. Poder-se-ia afirmar que essa parte da música séria deve
também ser compreendida em termos de detalhe mais do que de totalidade, ou então que, se o todo ainda
é perceptível nos tipos de dança da música séria, apesar da recorrência dos tipos, não há razão para
que isso não seja perceptível na moderna música popular.
A consideração seguinte dá uma resposta às duas objeções, mostrando as radicais diferenças mesmo onde
a música séria empregue tipos de dança. De acordo com pontos de vista formalistas correntes, o
scherzo da Quinta sinfonia de Beethoven pode ser encarado como um minuetto altamente
estilizado. O que Beethoven, nesse scherzo, toma do esquema tradicional do minuetto é a
idéia de uma manifesto contraste entre um minuetto em tom menor, um trio em tom maior e a
repetição do minuetto em tom menor; e também outras características, como o enfático ritmo
três por quatro, frequentemente acentuado na primeira quarta e, em larga escala, a simetria similar
à dança na sequência de compassos e períodos. Nesse movimento, contudo, sua idéia específica de forma
enquanto totalidade concreta muda o valor dos procedimentos emprestados do esquema de minuetto.
Todo o movimento é concebido como uma introdução ao finale, de modo a criar uma tremenda tensão,
não só por sua expressividade ameaçadora e agoureira, mas ainda mais pela própria maneira como o seu
desenvolvimento formal é tratado.
O esquema clássico do minuetto exigia que se apresentasse primeiramente o tema principal, depois
a introdução de uma segunda parte, que pode levar a regiões tonais mais distantes - formalmente similar,
por certo, à "ponte" [parte intermediária] na música popular de hoje - e, finalmente, a reapresentação da
parte original. Tudo isso ocorre em Beethoven. Ele retoma a idéia do dualismo temático dentro da parte
do scherzo, ao mesmo tempo que força aquilo que era, no minuetto convencional, uma regra
de jogo tácita e sem sentido a falar com sentido. Ele alcança plena consciência entre a estrutura formal
e o seu conteúdo específico, isto é, a elaboração de seus temas. Toda a parte scherzo desse
scherzo (vale dizer, aquilo que ocorre antes da entrada das cordas graves em dó maior, que
marca o início do trio) consiste no dualismo dos dois temas, a figura arrastada nas cordas e a resposta
"objetiva", pétrea, dos instrumentos de sopro. Esse dualismo não é desenvolvido de maneira esquemática,
de tal modo que primeiro seha elaborada a frase das cordas, depois a resposta dos instrumentos de sopro,
para, então, o tema das cordas ser mecanicamente repetido. Depois de o segundo tema ocorrer pela primeira
vez nas trompas, os dois elementos essenciais são alternadamente interconectados, à maneira de um
diálogo, e o final da parte do scherzo é de fato caracterizado não pelo primeiro, mas pelo segundo
tema, que dominou a primeira frase musical.
Além disso, a repetição do scherzo depois do trio é orquestrada de modo tão diferente que soa
como uma mera sombra do scherzo e assume aquele caráter fantasmagórico que só desaparece com a
afirmativa entrada do tema do finale. Todo o processo tornou-se dinâmico. Não só os temas,
mas a própria forma musical foi submetida à tensão: a mesma tensão que já está manifesta dentro da dupla
estrutura do primeiro tema, que consiste como que em pergunta e resposta, e está ainda mais manifesto
dentro da disputa entre os dois temas principais. O esquema todo tornou-se sujeito às demandas inerentes
a esse movimento articular.
Sumariando a diferença: em Beethoven e na boa música séria em geral - nós não estamos nos referindo
aqui à má música séria, que pode ser tão rígida e mecânica quanto a música popular - o detalhe contém
virtualmente o todo e leva à exposição do todo, ao mesmo tempo em que é produzido a partir da concepção
do todo. Na música popular, a relação é fortuita. O detalhe não tem nenhuma influência sobre o todo,
que aparece como uma estrutura extrínseca. Assim, o todo nunca é alterado pelo evento individual e, por isso,
permanece como que à distância, impertubável, como se ao longo da peça não se tomasse conhecimento dele.
Ao mesmo tempo, o detalhe é mutilado por um procedimento que jamais pode influenciar e alterar, de tal
modo que ele permanece inconsequente. Um detalhe musical impedido de desenvolver-se torna-se uma
caricatura de suas próprias potencialidades.