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quinta-feira, 4 de julho de 2013

Requisitos mínimos

Requisitos mínimos

A estrutura do material musical requer uma técnica peculiar, através do qual ela é imposta. Esse processo pode ser aproximadamente definido como plugging [colocação no circuito, promoção]. O termo plugging tinha originalmente o estreito significado da repetição incessante de um hit particular, de modo a torná-lo "um sucesso". Nós aqui o usamos no sentido amplo, de uma continuação do processo inerente à composição e ao arranjo do material musical. A promoção pelo plugging [literalmente, "arrolhamento"] almeja quebrar a resistência ao musicalmente sempre-igual ou idêntico, fechando, por assim dizer, as vias de fuga ao sempre-igual. Isso leva o ouvinte a extasiar-se como o inevitável. E leva, assim, à instituicionalização e à estandardização dos próprios hábitos de audição. Os ouvintes se tornam tão acostumados à repetição das mesmas coisas que reagem automaticamente. A estandardização do material requer um mecanismo de promoção vindo de fora, visto que cada coisa iguala qualquer outra numa extensão tal que a ênfase na apresentação proporcionada pela promoção precisa substituir a falta de genuína individualidade no material. O ouvinte de inteligência musical normal e que escuta, pela primeira vez, o tema de Kundry da ópera Parsifal é capaz de reconhecê-lo quando ele é tocado de novo, pois é inconfundível e não-cambiável por qualquer outra coisa. Se o mesmo ouvinte fosse confrontado com um hit médio, ele não seria capaz de distingui-lo de qualquer outro, exceto se fosse repedito com tanta frequência que ele seria forçado a recordá-lo. A repetição confere ao hit uma importância psicológica que, de outro modo, ele jamais poderia ter. Essa promoção é o inevitável complemento da estandardização. Desde que o material preenchar certos requisitos mínimos, qualquer canção pode ser promovida num sucesso, se houver uma adequada conexão entre gravadoras, nomes de conjuntos musicais, estações de rádio e filmes. Mais importante é o seguinte requisito: para ser promovido, um hit deve ter ao menos um traço através do qual possa ser distinguido de qualquer outro, e ainda possuir a completa convencionalidade e trivialidade de todos os demais. O presente critério, pelo qual uma música é julgada digna de promoção, é paradoxal. A gravadora quer uma peça musical que seja fundamentalmente idêntica a todos os hits correntes em ao mesmo tempo, fundamentalmente distinta deles. Só sendo a mesma é que tem chance de ser vendida automaticamente, sem requerer nenhum esforço da parte do usuário, e apresentar-se como uma instituição musical. E só sendo diferente é que ela pode ser distinguida de outras canções - o que é um requisito para ser lembrado e, portanto, ser um sucesso.

É claro que essa dupla aspiração não pode ser realizada. No caso de canções de fato gravadas e promovidas, verifica-se alguma espécie de compromisso, algo que, de modo geral, é o mesmo e ostenta apenas uma única marca mercantil que as faça parecer originais. O traço distintivo não precisa necessariamente ser melódico, mas pode consistir em irregularidades métricas, acordes ou timbres sonoros peculiares.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Pseudo-individuação

Pseudo-individuação

O paradoxo nos desejos - o relativo ao que é "estimulante" e o relativo ao que é "natural" - explica o caráter dual da própria estandardização. A estilização da sempre idêntica estrutura básica é apenas um aspecto da estandardização. Concentração e controle, em nossa cultura, escondem-se em sua própria manifestação. Não camuflados, eles provocariam resistências. Por isso, precisa ser mantida a ilusão e, em certa medida, até a realidade de uma realização individual. A manutenção disso está fundada na própria realidade material, pois enquanto o controle administrativo sobre processos vitais é concentrado, a propriedade permanece difusa.

Na esfera da produção do luxo, esfera a que a música popular pertence e em que não estão imediatamente envolvidas necessidades vitais, ao mesmo tempo que os resíduos do individualismo aí estão bem vivos, sob a forma de categorias ideológicas como gosto e livre-escolha, impo-se escamotear a estandardização. O "subdesenvolvimento" da produção musical em massa, o fato de que ela ainda está num nível artesanal e não num nível literalmente industrial, conforma-se perfeitamente a essa necessidade, que é essencial da perspectiva da grande empresa cultural. Se os elementos artesanais da música popular fossem todos abolidos, teria de ser desenvolvido um meio sintético de esconder a estandardização. Seus elementos já existem.

O correspondente necessário da estandardização musical é a pseudo-individuação. Por pseudo-individuação entendemos o envolvimento da produção cultural de massa com a auréola da livre-escolha ou do mercado aberto, na base da própria estandardização. A estandardização de hits musicais mantém os usuários enquadrados, por assim dizer escutando por eles. A pseudo-individuação, por sua vez, os mantém enquadrados, fazendo-os esquecer que o que eles escutam já é sempre escutado por eles, "pré-dirigido".

O exemplo mais drástico de estandardização de traços presumivelmente individualizados pode ser encontrado nos assim chamados "improvisos". Mesmo que os músicos de jazz ainda improvisem na prática, os improvisos deles se tornaram tão "normalizados", a ponto de permitirem o desenvolvimento de toda uma terminologia que, por sua vez, é tromboteada pelos agentes da publicidade do jazz para promover o mito do artesanato pioneiro e, ao mesmo tempo, lisonjear os fãs, aparentemente permitindo-lhes espiarem os bastidores e ficarem por dentro da história. Essa pseudo-individuação é prescrita pela estandardização da cultura. Está é tão rígida que a liberdade que ela permite para qualquer espécie de improviso é severamente delimitada. Improvisos - passagens em que é permitida a ação espontânea de indivíduos (Swing it boys") - são confinados dentro das paredes do esquema harmônico e métrico. Em um grande número de casos, como o "break" do jazz anterior ao swing, a função musical do detalhe improvisado é completamente determinada pelo esquema: o break não pode ser nada mais que uma cadência disfarçada. Por isso restam bem poucas possibilidades para uma efetiva improvisação, devido à necessidade de apenas circunscrever melodicamente as mesmas funções harmônicas subjacentes. Como essas possibilidades foram rapidamente exauridas, logo ocorreu a estereotipagem de detalhes improvisadores. Assim, a estandardização da norma acresce, de um modo puramente técnico, a estandardização de seus próprios desvios: pseudo-individuação.

Essa subserviência do improviso à estandardização explica duas principais qualidades sociopsicológicas da música popular. Uma é o fato de que o detalhe permanece abertamente ligado ao esquema subjacentes, de tal modo que o ouvinte sempre se sente pisando em solo firme. A escolha, em termos de alterações individuais, é tão estreita que o eterno retorno das mesmas variações é um sinal reassegurador do idêntico por trás delas. A outra é a função de "substituição" - os traços improvisatórios impedem que sejam tomados como fenômenos musicais em si mesmos. Eles só podem ser percebidos como embelezamentos. É um fato bem conhecido que, em arranjos mais ousados para jazz, notas pertubadoras, tons "sujos" em outras palavras, notas falsas, desempenham um papel conspícuo. São percebidas como estímulos excitantes só porque são corrigidas pelo ouvido para a nota correta. Isso, no entanto, é apenas um exemplo extremo daquilo que acontece menos conspicuamente em toda individuação na música popular. Qualquer ousadia harmônica, qualquer acorde que não caia estritamente dentro do mais simples esquema harmônico, exige ser percebido como "falso", isto é, como um estímulo que carrega consigo a clara prescrição de substituií-lo pelo detalhe correto, ou melhor, pelo puro esquema. Entender música popular significa obedecer a tais comandos ao escutar. A música popular impõe os seus próprios hábitos de audição.

Há um outro tipo de individuação reclamado em termos de espécies de música popular e diferenças entre orquestras identificadas pelos nomes dos seus líderes. Os tipos de música popular são cuidadosamente diferenciados na produção. Presume-se que o ouvinte seja capaz de escolher entre eles. As diferenciações mais amplamente reconhecidas são as entre swing e sweet, e entre nomes de big bands como Benny Goodman e Guy Lombardo. Rapidamente o ouvinte está se tornando habilitado a distinguir os tipos de música e até mesmo o conjunto que está tocando, e isso a despeito da fundamental identidade do material e da grande similaridade nas apresentações, por mais enfática que seja a distinção entre as marcas comerciais. Essa técnica de rotulação, no que concerne aos tipos de música e de conjunto musical, é uma pseudo-individuação, mas de uma espécie sociológica, fora do âmbito da estrita tecnologia musical. Providencia marcas comerciais de identificação para diferenciar algo que de fato é efetivamente indiferenciado.

A música popular se torna um questionário de múltipla escolha. Há dois tipos principais e seus derivados, entre os quais é preciso escolher. O ouvinte é psicologicamente encorajado pela inexorável presença desses tipos a saltar o que lhe desgosta e a deter-se no que lhe agrada. A limitação inerente a essa escolha e a alternativa claramente delineada que ela contém acarretam padrões de compartamento do tipo gosto/não gosto. Essa dicotomia mecânica rompe com a indiferença: é imperativo estar a favor do sweet ou do swing, caso se queira continuar escutando música popular.

Estandardização

Estandardização

A discussão anterior mostra que a diferença entre música popular e música séria pode ser fixada em termos mais precisos do que aqueles que se referem a níveis musicais como "lowbrow e highbrow", "simples e complexo", "ingênuo e sofisticado". Por exemplo, a diferença entre as esferas não pode ser adequadamente expressa em termos de complexidade e simplicidade. Todas as obras do primeiro classicismo vienense são, sem exceção, ritmicamente mais simples do que arranjos rotineiros de jazz. Melodicamente, os largos intervalos de numerosos hits como Deep purple ou Sunrise serenade são per se mais difíceis se seguir que a maioria das melodias de, por exemplo, Haydn, que consistem principalmente em grupos de tríades tônicas e de intervalos se segunda. Harmonicamente, a oferta de acordes dos assim chamados clássicos é, invariavelmente, mais limitada do que o de qualquer compositor corrente da Tin Pan Alley [em Nova York, reduto dos produtores de hits calcados no jazz] que copia Debussy, Ravel e até mesmo fontes posteriores. Padronização e não-padronização são os termos contrastantes fundamentais para estabelecer a diferença.

A estandardização estrutural busca reações estandardizadas. A audição da música popular é manipulada não só por aqueles que a promovem, mas, de certo modo, também pela natureza inerente dessa própria música, num sistema de macanismos de resposta totalmente antagônico ao ideal de individualidade numa sociedade livre, liberal. Isso nada tem a ver com simplicidade e complexidade. Na boa música séria, todo elemento musical, mesmo o mais simples, é "ele mesmo"; e, quanto mais altamente organizada é a obra, menor é a possibilidade de substituição entre os detalhes. No hit, entretanto, a estrutura subjacente à peça é abstrata, existindo independente co curso específico da música. Isso é básico para a ilusão de que certas harmonias complexas são mais inteligíveis na música popular do que essas mesmas harmonias na música séria. Pois o complicado na música popular nunca funciona como "ele mesmo", mas só como um disfarce ou um embelezamento atrás do qual o esquema sempre pode ser percebido. No jazz, o ouvinte amador é capaz de substituir complicadas fórmulas rítmicas ou harmônicas pelas esquemáticas que aquelas representam e ainda sugerem, por mais ousadas que possam parecer. O ouvido enfrenta as dificuldades do hit encontrando substituições superficiais, derivadas do conhecimento dos modelos padronizados. O ouvinte, quando se defronta com o complicado, ouve, de fato, apenas o simples que ele representa, percebendo o complicado somente como uma parodística distorção do simples.

Tal substituição mecânica por padrões estereotipados não é possível na boa música séria. Nela, mesmo o mais simples evento necessita de esforço para que seja captado de modo imediato, ao invés de ser vagamente resumido de acordo com prescrições institucionalizadas, capazes de produzir apenas efeitos institucionalizados. Caso contrário, a música não será "entendida". A música popular, no entanto, é composta de tal modo que o processo de tradução do singular para a norma já está planejado e, até certo ponto, realizado dentro da própria composição.

A composição escuta pelo ouvinte. Esse é o modo de a música popular despojar o ouvinte de sua espontaneidade e promover reflexos condicionados. Ela somente dispensa o esforço do ouvinte para seguir o fluxo musical concreto, como lhe dá, de fato, modelos sob os quais qualquer coisa concreta ainda remanescente pode ser subsumida. A construção esquemática dita o modo como ele deve ouvir, enquanto torna, ao mesmo tempo, qualquer esforço no escutar desnecessário. A música popular é "pré-dirigida", de um modo bastante similar à moda dos digest de material impresso. Em última análise, é a estrutura da música popular contemporânea a responsável por aquelas mudanças nos hábitos de ouvir música que discutiremos mais tarde.

Até aqui a estandardização da música popular foi considerada em termos estruturais - isto é, como uma qualidade inerente, sem referência explícita ao processo de produção ou às causas subjacentes à estandardização. Embora toda a produção industrial de messa necessariamente resulte em estandardização, a produção de música popular só pode ser chamada de "industrial" em sua promoção e distribuição, enquanto o ato de produzir música do tipo hit ainda permanece num estádio manufatureiro. A produção da música popular é altamente centralizada em sua organização econômica, mas "individualista" em seu modo social de produção. A divisão de trabalho entre compositor, harmonizador e arranjador não é industrial, mas simula a industrialização, a fim de parecer mais atualizada, enquanto, na verdade, adaptou métodos industriais para a técnica de sua promoção. Os custos de produção não aumentariam se os vários compositores de melodias hit não seguissem certos padrões estandardizados. Por isso, precisamos procurar outras razões para a estandardização estrutural - razões muito diferentes daquelas que se levam em conta para a estandardização de carros e alimentos para o desjejum.

A imitação oferece um fio condutor para enfrentar as razões básicas disso. Os padrões musicais da música popular foram originalmente desenvolvidos num processo competitivo. Quando uma determinada canção alcançava um grande sucesso, centenas de outras apareciam, imitando aquela que obtivera êxito. Os hits de maior sucesso, tipos e "proporções" entre elementos eram imitados, tendo o processo culminado na cristalização de standards. Nas condições centralizadas como as hoje existentes, esses standards acabaram se "congelando". Isto é, eles foram controlados por agências cartelizadas, resultado final de um processo competitivo, e rigidamente imposto sobre o material a ser promovido. O não-seguir as regras do jogo tornou-se critério para a exclusão. Os padrões originais, agora estandardizados, evoluíram num percurso mais ou menos competitivo. A concentração econômica em larga escala instituicionalizou a estandardização, tornando-a imperativa. Como resultado disso, inovações feitas por empedernidos individualistas foram bloqueadas. Os modelos standard acabaram investidos e revestidos com a imunidade da grandeza: "o rei não pode errar". Isso também explica as redescobertas na música popular. Elas não têm o desgastado caráter dos produtos estandardizados, manufaturados segundo um padrão dado. O sopro da livre competição ainda está vivo dentro delas. Por outro lado, os famosos "hits" antigos que são revividos recolocam os padrões que foram estandardizados. Eles são a idade de ouro das regras do jogo.

Esse "congelamento" de standards é socialmente imposto às próprias agências. A música popular precisa ir simultaneamente ao encontro de duas demandas. Uma é a de estímulos que provoquem a atenção do ouvinte. A outra é a de material que racaia dentro da categoria daquilo que ou ouvinte sem conhecimento musicais chamaria de música "natural": isto é, a soma total de todas as convenções e fórmulas materiais na música, às quais ele está acostumado e que ele encara como a linguagem simples e intrínseca à própria música, não importa quão tardio possa ser o desenvolvimento que produzia essa linguagem natural. Essa linguagem natural, para o ouvinte americano, provém de suas primeiras experiências musicais, as cantigas de ninar, os hinos cantados no culto dominical, as pequenas melodias assoviadas no caminho de volta da escola para casa. Tudo isso é muito mais importante na formação da linguagem musical do que a habilidade em distinguir entre o início da Terceira e o da Segunda sinfonia de Brahms. A cultura musical oficial subjacente, ou seja, a tonalidade maior e menor e todas as relações tonais aí implicadas. Mas essas relações tonais da linguagem musical primitiva colocam barreiras para tudo o que não se conforme a elas. Extravagâncias são toleradas somente na medida em que podem ser reenquadradas na assim chamada linguagem natural.

Em termos de demanda de consumidor, a estandardização da música popular é apenas a expressão desse duplo desejo a ela imposto pela mentalidade do público: que ela seja "estimulante" por desviar-se, de algum modo, do "natural" institucionalizado e que mantenha a suprecial do natural contra tais desvios. A atitude da audiência em relação à linguagem natural é reforçada pela produção estandardizada, que institucionaliza desejos talvez originalmente oriundos do público.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

As duas esferas da música

As duas esferas da música

A música popular, que produz os estímulos que aqui estamos investigando, costuma ser caracterizada por sua diferença em relação à música séria. Essa difença é geralmente aceita e encarada como uma diferença de níveis, considerados tão bem definidos que a maioria das pessoas considera o valor de cada qual como totalmente independente do valor do outro. Nós acreditamos ser necessário, no entanto, primeiro traduzir esses assim chamados "níveis" em termos mais precisos, tanto musical quanto socialmente, que não só os delimitem de modo inequívoco, mas também lacem luz sobre todo o espectro das duas esferas musicais.

Um possível método para alcançar essa clarificação seria uma análise histórica da divisão, tal como ocorreu na produção musical, bem como das raízes das duas principais esferas. Como, porém, o presente estudo se refere à real função da música popular em seu estado atual, é mais prudente seguir a linha da caracterização do próprio fenômeno, tal como ele se dá hoje, do que retraçá-lo desde as suas origens. Ossp se justifica tanto mais quanto essa divisão da música em duas esferas ocorreu na Europa muito antes de ter surgido a música popular norte-americana. Desde o seu início, a música norte-americana aceito essa divisão como algo preestabelecido e, por isso, o background histórico da divisão só se aplica a ela indiretamente. Daí procurarmos, antes de mais nada, uma visão das características fundamentais da música popular em seu sentido mais amplo.

Um jugalmento claro no que concerne à relação entre música séria e música popular só pode ser alcançado prestando-se estrita atençaõ á característica fundamental da música popular: a estandardização. Toda a estruta da música popular é estandardizada, mesmo quando se busca desviar-se disso. A estandardização se estende dos traços mais genéricos até os mais específicos. Muito conhecida é regra de que o chorus [a parte temática] consiste em trinta e dois compassos e que a sua amplitude é limitada a uma oitava e uma nota. Os tipos gerais de hits são também estandardizados: não só os tipos de música para dançar, cuja rígida padronização se compreende, mas também os tipos "característicos", como as canções de ninar, canções familiares, lamentos por uma garota perdida. E, o mais importante, os pilares harmônicos de cada hit - o começo e o final de cada parte - precisam reiterar o esquema-padrão. Esse esquema enfatiza os mais primitivos fatos harmônicos, não importa o que tenha intervindo em termos de harmonia. Complicações não têm consequências. Esse inexorável procedimento garante que, não importa que aberrações ocorram, o hit acabará conduzindo tudo de volta para a mesma experiência familiar, e que nada de fundamentalmente novo será introduzido.

Os pŕoprios detalhes não são menos padronizados do que a forma: e há toda uma terminologia para eles, como break, blue chords, dirty notes. A estandardização deles é, no entanto, algo diferente da estrutura geral. Não é aberta como essa última, mas escamoteada atrás de uma fachada de "efeitos" individuais, cujas prescrições são manipuladas como um segredo de especialista, por mais que esse segredo esteja aberto aos músicos em geral. Esse caráter contrastante da padronização do todo e da parte proporciona um cenário rudimentar, preliminar, para o efeito sobre o ouvinte.

O efeito primário dessa relação entre a estrutura geral e o detalhe é que o ouvinte fica inclinado a ter reações mais fortes para a parte do que para o todo. Sua captação do todo não reside na experiência viva dessa peça concreta de música que ele tenha acompanhado. O todo é preestabelecido e previamente aceito, antes mesmo de começar a real experiência da música; por isso, quase não parece influenciar a reação dos detalhes, exceto em conferir-lhes graus variados de ênfase. Detalhes que, musicalmente, ocupam posições estratégicas na estrutura geral - o começo da parte temática ou a sua nova entrada depois da "ponte" [da parte intermediária] - têm uma chance melhor de ser reconhecidos ou favoravelmente recebidos do que detalhes não situados dessa maneira, como, por exemplo, compassos no meio da parte intermediária. Mas a esse nexo situacional jamais interfere com o próprio esquema. No concernente a esse nexo situacional, os detalhes dependem do todo. Em momento algum qualquer ênfase é colocada sobre o todo como um evento musical, nem tampouco a estrutura do todo depende dos detalhes.

Para fins de comparação, a música séria pode ser caracterizada do seguinte modo:

Cada detalhe deriva o seu sentido musical da totalidade concreta da peça, que, em troca, consiste na viva relação entre os detalhes, mas nunca na mera imposição de um esquema musical. Por exemplo, na introdução do primeiro movimento da Sétima sinfonia, de Beethoven, o segundo tema (em dó maior) só alcança o seu verdadeiro significado a partir do contexto. Somente através do todo é que ele adquire a sua peculiar qualidade lírica e expressiva, isto é, uma construção inteiramente contrastante como o caráter como que de cantus firmus do primeiro tema. Tomado isoladamente, o segundo tema seria reduzido à insignificância. Um outro exemplo pode ser encontrato no começo da recapitulação sobre a indicação de pedal no primeiro movimento da Apassionata de Beethoven. Por seguir-se à explosão precedente, ele alcança o supremo momentum dramático. Se se omitisse a exposição e o desenvolvimento e se começasse com essa repetição, tudo estaria perdido.

Nada equivalente pode ocorrer na música popular. O sentido musical não seria afetado se qualquer detalhe fosse tirado do contexto; o ouvinte pode suprir automaticamente a "estrutura", na medida em que ela é, por si mesma, um mero automatismo musical. O começo da parte temática pode ser substituído pelo começo de inúmeras outras. A inter-relação entre os elementos ou a relação dos elementos com o todo não seria afetada. Em Beethoven, a posição é importante só numa relação viva entre uma totalidade concreta e suas partes concretas. Na música popular, a posição é algo absoluto. Cada detalhe é substituível; serve à função apenas como uma engrenagem numa máquina.

O mero estabelecimento dessa diferença ainda não é suficiente. Pode-se objetar que os esquemas estandardizados de amplo alcance e os tipos de música popular estão ligados à dança e, por isso, são também aplicáveis a derivados da dança na música séria, como, por exemplo, o minuetto e o scherzo da Escola Vienense clássica. Poder-se-ia afirmar que essa parte da música séria deve também ser compreendida em termos de detalhe mais do que de totalidade, ou então que, se o todo ainda é perceptível nos tipos de dança da música séria, apesar da recorrência dos tipos, não há razão para que isso não seja perceptível na moderna música popular.

A consideração seguinte dá uma resposta às duas objeções, mostrando as radicais diferenças mesmo onde a música séria empregue tipos de dança. De acordo com pontos de vista formalistas correntes, o scherzo da Quinta sinfonia de Beethoven pode ser encarado como um minuetto altamente estilizado. O que Beethoven, nesse scherzo, toma do esquema tradicional do minuetto é a idéia de uma manifesto contraste entre um minuetto em tom menor, um trio em tom maior e a repetição do minuetto em tom menor; e também outras características, como o enfático ritmo três por quatro, frequentemente acentuado na primeira quarta e, em larga escala, a simetria similar à dança na sequência de compassos e períodos. Nesse movimento, contudo, sua idéia específica de forma enquanto totalidade concreta muda o valor dos procedimentos emprestados do esquema de minuetto. Todo o movimento é concebido como uma introdução ao finale, de modo a criar uma tremenda tensão, não só por sua expressividade ameaçadora e agoureira, mas ainda mais pela própria maneira como o seu desenvolvimento formal é tratado.

O esquema clássico do minuetto exigia que se apresentasse primeiramente o tema principal, depois a introdução de uma segunda parte, que pode levar a regiões tonais mais distantes - formalmente similar, por certo, à "ponte" [parte intermediária] na música popular de hoje - e, finalmente, a reapresentação da parte original. Tudo isso ocorre em Beethoven. Ele retoma a idéia do dualismo temático dentro da parte do scherzo, ao mesmo tempo que força aquilo que era, no minuetto convencional, uma regra de jogo tácita e sem sentido a falar com sentido. Ele alcança plena consciência entre a estrutura formal e o seu conteúdo específico, isto é, a elaboração de seus temas. Toda a parte scherzo desse scherzo (vale dizer, aquilo que ocorre antes da entrada das cordas graves em dó maior, que marca o início do trio) consiste no dualismo dos dois temas, a figura arrastada nas cordas e a resposta "objetiva", pétrea, dos instrumentos de sopro. Esse dualismo não é desenvolvido de maneira esquemática, de tal modo que primeiro seha elaborada a frase das cordas, depois a resposta dos instrumentos de sopro, para, então, o tema das cordas ser mecanicamente repetido. Depois de o segundo tema ocorrer pela primeira vez nas trompas, os dois elementos essenciais são alternadamente interconectados, à maneira de um diálogo, e o final da parte do scherzo é de fato caracterizado não pelo primeiro, mas pelo segundo tema, que dominou a primeira frase musical.

Além disso, a repetição do scherzo depois do trio é orquestrada de modo tão diferente que soa como uma mera sombra do scherzo e assume aquele caráter fantasmagórico que só desaparece com a afirmativa entrada do tema do finale. Todo o processo tornou-se dinâmico. Não só os temas, mas a própria forma musical foi submetida à tensão: a mesma tensão que já está manifesta dentro da dupla estrutura do primeiro tema, que consiste como que em pergunta e resposta, e está ainda mais manifesto dentro da disputa entre os dois temas principais. O esquema todo tornou-se sujeito às demandas inerentes a esse movimento articular.

Sumariando a diferença: em Beethoven e na boa música séria em geral - nós não estamos nos referindo aqui à má música séria, que pode ser tão rígida e mecânica quanto a música popular - o detalhe contém virtualmente o todo e leva à exposição do todo, ao mesmo tempo em que é produzido a partir da concepção do todo. Na música popular, a relação é fortuita. O detalhe não tem nenhuma influência sobre o todo, que aparece como uma estrutura extrínseca. Assim, o todo nunca é alterado pelo evento individual e, por isso, permanece como que à distância, impertubável, como se ao longo da peça não se tomasse conhecimento dele. Ao mesmo tempo, o detalhe é mutilado por um procedimento que jamais pode influenciar e alterar, de tal modo que ele permanece inconsequente. Um detalhe musical impedido de desenvolver-se torna-se uma caricatura de suas próprias potencialidades.

Série "Sobre a Música Popular", de Theodor W. Adorno

Iniciando a parte de Sociologia deste blog, transcreverei textos de Theodor W. Adorno, que foi sociólogo, filósofo, musico, crítico literário, enfim, um expoente da escrita crítica.

Começaremos com os textos Sobre música popular, extraído de Studies in Philosophy and Social Science, v. 9.

Os tópicos deste tema estão assim compreendidos:

  1. SOBRE MÚSICA POPULAR

    1. O material musical

      1. As duas esferas da música

      2. Estandardização

      3. Pseudo-individuação

    2. Apresentação do material

      1. Requisitos mínimos

      2. Glamour

      3. Fala da criança

    3. Teoria do ouvinte

      1. Reconhecimento e aceitação

      2. Música popular e "lazer"

      3. O cimento social

      4. Ambivalência, despeito, fúria

Tão breve quanto possível daremos prosseguimento à série. Aguardem e apreciem!

quarta-feira, 26 de junho de 2013

A verdadeira importância do Latim (Parte II)

4 - É também inteiramente falso educadores - assim chamados porque dentro das lutas e ambições políticas ocuparam pastas de educação ou, quando muito, escreveram livros de psicologia infantil - dizerem que - estas palavras foram proferidas numa sessão da comissão de "diretrizes e bases do ensino", comissão nomeada para cumprimento do artigo 5, inciso XV, d, da constituição federal - "nos Estados Unidos da América do Norte, país que ninguém nega estar na vanguarda do progresso, não se estuda latim."

Felizmente, nessa mesma reunião, a desastrada afirmação não ficou sem resposta; um dos membros da comissão não se fez esperar: "Como não se estuda? É fácil provar; peçamos de diversos estabelecimentos norte-americanos - de diversos, porque a programação do ensino secundário aí não é única como no Brasil - o programa, que veremos a verdade". Dias e dias decorreram, e nada de programas; interrogado, o "educador" respondeu que não tinham chegado; um dia porém - não sei de quem foi a maior distração - o defensor do latim examina uma gaveta, esquecida aberta, e aí vê, guardados ou escondidos, os programas solicitados, e em todos eles o latim rigorosamente exigido.

Esse "educador" é... presidente de uma seção estadual de partido político.

5 - Não encontra o pobre ginasiano brasileiro quem lhe prove ser o latim, dentre todas as disciplinas, a que mais favorece o desenvolvimento da inteligência. Talvez nem mesmo compreenda o significado de "desenvolver a inteligência", tal a rudeza de sua mente, preocupada com outras coisas que não estudos.

O hábito da análise, o espírito de observação, a educação do raciocínio dificilmente podemos, pobres professores, ou melhor, ditadores de pontos de exame, conseguir de um menino preocupado tão só com médias, com férias, com bolas, com revistas.

Muita gente há, alheia a assuntos educação, que se admira com ver o latim adotado em todas as sérias ginasiais, mal sabendo que ensinar não é ditar e que educar não é ensinar. É ensinar dar independência de pensamento ao aluno, fazendo com que de per si progrida: o professor é guia. É educar incutir no menino o espírito de análise, de observação, de raciocínio, capacitando-o a ir além da simples letra do texto, do simples conteúdo de um livro, incentivando-o, animando-o. No fazer do menino de hoje o homem de amanhã está o trabalho educacional do professor.

6 - Quando o aluno compreender quanta atenção exige o latim, quanto lhe prendem o intelecto e lhe deleitam o espírito as várias formas flexionais latinas, a diversidade de ordem dos termos, a variedade de construções de um período, terá de sobejo visto a excelente cooperação, a real e insubstituível utilidade do latim na formação do seu espírito e a razão de ser o latim obrigatório nos países civilizados.

Ser culto não é conhecer idiomas diversos. Não é o conhecimento do inglês nem do francês que vem comprovar cultura no indivíduo. Tanto marinheiro, tanto mascate, tanto cigano há a quem meia dúzia de idiomas são familiares sem que, no entanto, possuam cultura.

Não é para falar latim que o ginasiano estuda esse idioma. Para aguçar seu intelecto, para tornar-se mais observador, para aperfeiçoar-se no poder de concentração de espírito, para obrigar-se à atenção, para desenvolver o espírito de análise, para acostumar-se à calma e à ponderação, qualidades imprescindíveis ao homem de ciência, é que o ginasiano estuda esse idioma.

7 - Muita gente indaga a razão da fatuidade, da leviandade, da aridez intelectual da geração moça de hoje. É que, tendo aprendido a ler pelo método analítico, tão prático e fácil, julga o menino que a disciplina que prática e facilidade no aprendizado não contiver não lhe trará proveito, senão tédio e perda de tempo. Acostumado a tudo assimilar com facilidade no curso primário, esbarra o aluno no ginásio com a obrigação de pensar, e ele estranha, e ele se abate, e ele se rebela. O menino que no curso primário era o primeiro da classe passa para lugar inferior no ginásio; perda de inteligência, diferença de idade? Não: falta de hábito de pensar. O que no curso primário estava em quinto, em décimo lugar passa no ginásio às primeiras colocações; aquisição de inteligência? Também não: pensamento mais demorado, mais firme por isso mesmo, sobrepuja agora os colegas de intelecto mais vivo, vivo porém tão só para as coisas objetivas e de evidência.

Raciocinar é, partindo de idéias conhecidas, diferentes, chegar a uma terceira, desconhecida, e é o latim, quando estudado com método, calma e ponderação, o maior fator para aguçar o poder de raciocínio do estudante, tornando-lhe mais claras e mais firmes as conclusões.

8 - O que é certo, inteiramente certo, é não conhecerem os homens que nos representam no congresso o que é educação, o que é cultura. Fato ocorrido muito recentemente vem prová-lo.

Discorrendo sobre a necessidade de nova reforma de ensino, um deputado citava as disciplinas inúteis nos diversos anos do curso secundário, quando é apoiado por um colega, que acrescenta: "O latim para as meninas".

Para este herói, o latim é inútil para as meninas, porque elas não vão rezar missa: é a única justificação que até agora pude entrever nesse tão infeliz aparte. Ás meninas, pobrezinhas, porque ensinar-lhes latim se não vão ler breviários?

Porque esse "para as meninas"? E porque, pergunto, não é também inútil para os meninos? Que distinção cultural faz esse deputado entre menino e menina? Que quer ele para elas? Aulas de arte culinária? Aulas de corte e costura? Pretende dizer que as suas meninas não devem cursar o ginásio ou quer com isso afirmar que o latim só interessa a padres?

A verdadeira importância do Latim (Parte I)

1 - É de todo falso pensar que a primeira finalidade do estudo do latim está no benefício que traz ao aprendizado do português. Vejamos, através de fatos e de pessoas, onde reside a primeira importância do estudo desse idioma.

Chegados ao Brasil, três eminentes matemáticos, de renome internacional, Gleb Wataghin, professor de mecânica racional e de mecânica celeste, Giacomo Albanese, professor de matemática, e Luigi Fantapié, professor de análise matemática, que vieram contratados para lecionar na Faculdade de Filosofia de S. Paulo (O professor Wataghin é considerado, no mundo inteiro, um dos maiores pesquisadores de raios cósmicos), cuidaram, logo após os primeiros meses de aula, de enviar um ofício ao então ministro da educação, que na época cogitava de reformar o ensino secundário. Vejamos o que, mais de esperança que de desânimo, continha esse ofício:

"Chegados ao Brasil, ficamos admirados com o cabedal de fórmulas decoradas de matemática com que os estudantes brasileiros deixam o curso secundário, fórmulas que na Itália (Os três professores eram catedráticos de diferentes faculdades italianas) são ensinadas só no segundo ano de faculdade; ficamos, porém, chocados com a pobreza de raciocínio, com a falta de ilação dos estudantes brasileiros; pedimos a vossa excelência que na reforma que se projeta se dê menos matemática e MAIS LATIM no curso secundário, para que possamos ensinar matemática no curso superior."

2 - O professor Albanese costumava dizer - e muitas pessoas são disto prova - "Dêem-me um bom aluno de latim, que farei dele um grande matemático."

3 - Outra prova de que é falso pensar que a primeira finalidade do latim está no proveito que traz ao conhecimento do português posso aduzir com este fato, comigo ocorrido.

Indo a visitar um amigo, encontrei-o a conversar com um senhor, de forte sotaque estrangeiro, que explicava as razões de certa modificação na planta de um prédio por construir; como, no decorrer da troca de idéias, tivesse por duas vezes proferido sentenças latinas, perguntei-lhe se havia feito algum curso especial de latim.

- Curso especial de latim? Não fiz, senhor.
- Mas o senhor esteve em algum seminário?
- Não, senhor; sou engenheiro.
- Percebo que o senhor é engenheiro; mas onde estudou latim?
- Na Áustria.
- Quantos anos?
- Sete anos.
- Sete anos?! Todo o engenheiro austríaco tem sete anos de latim?
- Sim, senhor; quem se destina a estudos superiores na Áustria estuda sete anos o latim.