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segunda-feira, 1 de julho de 2013

Estandardização

Estandardização

A discussão anterior mostra que a diferença entre música popular e música séria pode ser fixada em termos mais precisos do que aqueles que se referem a níveis musicais como "lowbrow e highbrow", "simples e complexo", "ingênuo e sofisticado". Por exemplo, a diferença entre as esferas não pode ser adequadamente expressa em termos de complexidade e simplicidade. Todas as obras do primeiro classicismo vienense são, sem exceção, ritmicamente mais simples do que arranjos rotineiros de jazz. Melodicamente, os largos intervalos de numerosos hits como Deep purple ou Sunrise serenade são per se mais difíceis se seguir que a maioria das melodias de, por exemplo, Haydn, que consistem principalmente em grupos de tríades tônicas e de intervalos se segunda. Harmonicamente, a oferta de acordes dos assim chamados clássicos é, invariavelmente, mais limitada do que o de qualquer compositor corrente da Tin Pan Alley [em Nova York, reduto dos produtores de hits calcados no jazz] que copia Debussy, Ravel e até mesmo fontes posteriores. Padronização e não-padronização são os termos contrastantes fundamentais para estabelecer a diferença.

A estandardização estrutural busca reações estandardizadas. A audição da música popular é manipulada não só por aqueles que a promovem, mas, de certo modo, também pela natureza inerente dessa própria música, num sistema de macanismos de resposta totalmente antagônico ao ideal de individualidade numa sociedade livre, liberal. Isso nada tem a ver com simplicidade e complexidade. Na boa música séria, todo elemento musical, mesmo o mais simples, é "ele mesmo"; e, quanto mais altamente organizada é a obra, menor é a possibilidade de substituição entre os detalhes. No hit, entretanto, a estrutura subjacente à peça é abstrata, existindo independente co curso específico da música. Isso é básico para a ilusão de que certas harmonias complexas são mais inteligíveis na música popular do que essas mesmas harmonias na música séria. Pois o complicado na música popular nunca funciona como "ele mesmo", mas só como um disfarce ou um embelezamento atrás do qual o esquema sempre pode ser percebido. No jazz, o ouvinte amador é capaz de substituir complicadas fórmulas rítmicas ou harmônicas pelas esquemáticas que aquelas representam e ainda sugerem, por mais ousadas que possam parecer. O ouvido enfrenta as dificuldades do hit encontrando substituições superficiais, derivadas do conhecimento dos modelos padronizados. O ouvinte, quando se defronta com o complicado, ouve, de fato, apenas o simples que ele representa, percebendo o complicado somente como uma parodística distorção do simples.

Tal substituição mecânica por padrões estereotipados não é possível na boa música séria. Nela, mesmo o mais simples evento necessita de esforço para que seja captado de modo imediato, ao invés de ser vagamente resumido de acordo com prescrições institucionalizadas, capazes de produzir apenas efeitos institucionalizados. Caso contrário, a música não será "entendida". A música popular, no entanto, é composta de tal modo que o processo de tradução do singular para a norma já está planejado e, até certo ponto, realizado dentro da própria composição.

A composição escuta pelo ouvinte. Esse é o modo de a música popular despojar o ouvinte de sua espontaneidade e promover reflexos condicionados. Ela somente dispensa o esforço do ouvinte para seguir o fluxo musical concreto, como lhe dá, de fato, modelos sob os quais qualquer coisa concreta ainda remanescente pode ser subsumida. A construção esquemática dita o modo como ele deve ouvir, enquanto torna, ao mesmo tempo, qualquer esforço no escutar desnecessário. A música popular é "pré-dirigida", de um modo bastante similar à moda dos digest de material impresso. Em última análise, é a estrutura da música popular contemporânea a responsável por aquelas mudanças nos hábitos de ouvir música que discutiremos mais tarde.

Até aqui a estandardização da música popular foi considerada em termos estruturais - isto é, como uma qualidade inerente, sem referência explícita ao processo de produção ou às causas subjacentes à estandardização. Embora toda a produção industrial de messa necessariamente resulte em estandardização, a produção de música popular só pode ser chamada de "industrial" em sua promoção e distribuição, enquanto o ato de produzir música do tipo hit ainda permanece num estádio manufatureiro. A produção da música popular é altamente centralizada em sua organização econômica, mas "individualista" em seu modo social de produção. A divisão de trabalho entre compositor, harmonizador e arranjador não é industrial, mas simula a industrialização, a fim de parecer mais atualizada, enquanto, na verdade, adaptou métodos industriais para a técnica de sua promoção. Os custos de produção não aumentariam se os vários compositores de melodias hit não seguissem certos padrões estandardizados. Por isso, precisamos procurar outras razões para a estandardização estrutural - razões muito diferentes daquelas que se levam em conta para a estandardização de carros e alimentos para o desjejum.

A imitação oferece um fio condutor para enfrentar as razões básicas disso. Os padrões musicais da música popular foram originalmente desenvolvidos num processo competitivo. Quando uma determinada canção alcançava um grande sucesso, centenas de outras apareciam, imitando aquela que obtivera êxito. Os hits de maior sucesso, tipos e "proporções" entre elementos eram imitados, tendo o processo culminado na cristalização de standards. Nas condições centralizadas como as hoje existentes, esses standards acabaram se "congelando". Isto é, eles foram controlados por agências cartelizadas, resultado final de um processo competitivo, e rigidamente imposto sobre o material a ser promovido. O não-seguir as regras do jogo tornou-se critério para a exclusão. Os padrões originais, agora estandardizados, evoluíram num percurso mais ou menos competitivo. A concentração econômica em larga escala instituicionalizou a estandardização, tornando-a imperativa. Como resultado disso, inovações feitas por empedernidos individualistas foram bloqueadas. Os modelos standard acabaram investidos e revestidos com a imunidade da grandeza: "o rei não pode errar". Isso também explica as redescobertas na música popular. Elas não têm o desgastado caráter dos produtos estandardizados, manufaturados segundo um padrão dado. O sopro da livre competição ainda está vivo dentro delas. Por outro lado, os famosos "hits" antigos que são revividos recolocam os padrões que foram estandardizados. Eles são a idade de ouro das regras do jogo.

Esse "congelamento" de standards é socialmente imposto às próprias agências. A música popular precisa ir simultaneamente ao encontro de duas demandas. Uma é a de estímulos que provoquem a atenção do ouvinte. A outra é a de material que racaia dentro da categoria daquilo que ou ouvinte sem conhecimento musicais chamaria de música "natural": isto é, a soma total de todas as convenções e fórmulas materiais na música, às quais ele está acostumado e que ele encara como a linguagem simples e intrínseca à própria música, não importa quão tardio possa ser o desenvolvimento que produzia essa linguagem natural. Essa linguagem natural, para o ouvinte americano, provém de suas primeiras experiências musicais, as cantigas de ninar, os hinos cantados no culto dominical, as pequenas melodias assoviadas no caminho de volta da escola para casa. Tudo isso é muito mais importante na formação da linguagem musical do que a habilidade em distinguir entre o início da Terceira e o da Segunda sinfonia de Brahms. A cultura musical oficial subjacente, ou seja, a tonalidade maior e menor e todas as relações tonais aí implicadas. Mas essas relações tonais da linguagem musical primitiva colocam barreiras para tudo o que não se conforme a elas. Extravagâncias são toleradas somente na medida em que podem ser reenquadradas na assim chamada linguagem natural.

Em termos de demanda de consumidor, a estandardização da música popular é apenas a expressão desse duplo desejo a ela imposto pela mentalidade do público: que ela seja "estimulante" por desviar-se, de algum modo, do "natural" institucionalizado e que mantenha a suprecial do natural contra tais desvios. A atitude da audiência em relação à linguagem natural é reforçada pela produção estandardizada, que institucionaliza desejos talvez originalmente oriundos do público.

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