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segunda-feira, 1 de julho de 2013

Pseudo-individuação

Pseudo-individuação

O paradoxo nos desejos - o relativo ao que é "estimulante" e o relativo ao que é "natural" - explica o caráter dual da própria estandardização. A estilização da sempre idêntica estrutura básica é apenas um aspecto da estandardização. Concentração e controle, em nossa cultura, escondem-se em sua própria manifestação. Não camuflados, eles provocariam resistências. Por isso, precisa ser mantida a ilusão e, em certa medida, até a realidade de uma realização individual. A manutenção disso está fundada na própria realidade material, pois enquanto o controle administrativo sobre processos vitais é concentrado, a propriedade permanece difusa.

Na esfera da produção do luxo, esfera a que a música popular pertence e em que não estão imediatamente envolvidas necessidades vitais, ao mesmo tempo que os resíduos do individualismo aí estão bem vivos, sob a forma de categorias ideológicas como gosto e livre-escolha, impo-se escamotear a estandardização. O "subdesenvolvimento" da produção musical em massa, o fato de que ela ainda está num nível artesanal e não num nível literalmente industrial, conforma-se perfeitamente a essa necessidade, que é essencial da perspectiva da grande empresa cultural. Se os elementos artesanais da música popular fossem todos abolidos, teria de ser desenvolvido um meio sintético de esconder a estandardização. Seus elementos já existem.

O correspondente necessário da estandardização musical é a pseudo-individuação. Por pseudo-individuação entendemos o envolvimento da produção cultural de massa com a auréola da livre-escolha ou do mercado aberto, na base da própria estandardização. A estandardização de hits musicais mantém os usuários enquadrados, por assim dizer escutando por eles. A pseudo-individuação, por sua vez, os mantém enquadrados, fazendo-os esquecer que o que eles escutam já é sempre escutado por eles, "pré-dirigido".

O exemplo mais drástico de estandardização de traços presumivelmente individualizados pode ser encontrado nos assim chamados "improvisos". Mesmo que os músicos de jazz ainda improvisem na prática, os improvisos deles se tornaram tão "normalizados", a ponto de permitirem o desenvolvimento de toda uma terminologia que, por sua vez, é tromboteada pelos agentes da publicidade do jazz para promover o mito do artesanato pioneiro e, ao mesmo tempo, lisonjear os fãs, aparentemente permitindo-lhes espiarem os bastidores e ficarem por dentro da história. Essa pseudo-individuação é prescrita pela estandardização da cultura. Está é tão rígida que a liberdade que ela permite para qualquer espécie de improviso é severamente delimitada. Improvisos - passagens em que é permitida a ação espontânea de indivíduos (Swing it boys") - são confinados dentro das paredes do esquema harmônico e métrico. Em um grande número de casos, como o "break" do jazz anterior ao swing, a função musical do detalhe improvisado é completamente determinada pelo esquema: o break não pode ser nada mais que uma cadência disfarçada. Por isso restam bem poucas possibilidades para uma efetiva improvisação, devido à necessidade de apenas circunscrever melodicamente as mesmas funções harmônicas subjacentes. Como essas possibilidades foram rapidamente exauridas, logo ocorreu a estereotipagem de detalhes improvisadores. Assim, a estandardização da norma acresce, de um modo puramente técnico, a estandardização de seus próprios desvios: pseudo-individuação.

Essa subserviência do improviso à estandardização explica duas principais qualidades sociopsicológicas da música popular. Uma é o fato de que o detalhe permanece abertamente ligado ao esquema subjacentes, de tal modo que o ouvinte sempre se sente pisando em solo firme. A escolha, em termos de alterações individuais, é tão estreita que o eterno retorno das mesmas variações é um sinal reassegurador do idêntico por trás delas. A outra é a função de "substituição" - os traços improvisatórios impedem que sejam tomados como fenômenos musicais em si mesmos. Eles só podem ser percebidos como embelezamentos. É um fato bem conhecido que, em arranjos mais ousados para jazz, notas pertubadoras, tons "sujos" em outras palavras, notas falsas, desempenham um papel conspícuo. São percebidas como estímulos excitantes só porque são corrigidas pelo ouvido para a nota correta. Isso, no entanto, é apenas um exemplo extremo daquilo que acontece menos conspicuamente em toda individuação na música popular. Qualquer ousadia harmônica, qualquer acorde que não caia estritamente dentro do mais simples esquema harmônico, exige ser percebido como "falso", isto é, como um estímulo que carrega consigo a clara prescrição de substituií-lo pelo detalhe correto, ou melhor, pelo puro esquema. Entender música popular significa obedecer a tais comandos ao escutar. A música popular impõe os seus próprios hábitos de audição.

Há um outro tipo de individuação reclamado em termos de espécies de música popular e diferenças entre orquestras identificadas pelos nomes dos seus líderes. Os tipos de música popular são cuidadosamente diferenciados na produção. Presume-se que o ouvinte seja capaz de escolher entre eles. As diferenciações mais amplamente reconhecidas são as entre swing e sweet, e entre nomes de big bands como Benny Goodman e Guy Lombardo. Rapidamente o ouvinte está se tornando habilitado a distinguir os tipos de música e até mesmo o conjunto que está tocando, e isso a despeito da fundamental identidade do material e da grande similaridade nas apresentações, por mais enfática que seja a distinção entre as marcas comerciais. Essa técnica de rotulação, no que concerne aos tipos de música e de conjunto musical, é uma pseudo-individuação, mas de uma espécie sociológica, fora do âmbito da estrita tecnologia musical. Providencia marcas comerciais de identificação para diferenciar algo que de fato é efetivamente indiferenciado.

A música popular se torna um questionário de múltipla escolha. Há dois tipos principais e seus derivados, entre os quais é preciso escolher. O ouvinte é psicologicamente encorajado pela inexorável presença desses tipos a saltar o que lhe desgosta e a deter-se no que lhe agrada. A limitação inerente a essa escolha e a alternativa claramente delineada que ela contém acarretam padrões de compartamento do tipo gosto/não gosto. Essa dicotomia mecânica rompe com a indiferença: é imperativo estar a favor do sweet ou do swing, caso se queira continuar escutando música popular.

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